domingo, 19 de julho de 2009

Jerzy Grotowski


"É necessário dar-se conta de que o nosso corpo é a nossa vida. No nosso corpo, inteiro, são inscritas todas as experiências. São inscritas sobre a pele e sob a pele, da infância até a idade presente e talvez também antes da infância, mas talvez também antes do nascimento da nossa geração. O corpo-vida é algo de tangível."


Jerzy Grotowski.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Dance, senão estamos todos perdidos.


Pina Bausch morre aos 68
O mundo da dança está de luto. E a razão para tanto desalento não podia ser mais triste: Pina Bausch, um dos maiores nomes da dança moderna e contemporânea, morreu ontem, aos 68 anos. A coreógrafa alemã, que revolucionou de maneira contundente a forma de dançar ainda nos anos 70, foi recentemente diagnosticada com câncer, segundo comunicado do Tanztheater Wuppertal, companhia criada por ela e com a qual criou a maior parte de seu legado.
Ursula Popp, porta-voz do grupo, afirmou que Pina teve "uma morte repentina e rápida, cinco dias após receber o diagnóstico de um câncer", e que ela foi internada no hospital para fazer exames, devido a um estado de fadiga intensa, e "não saiu de lá."

Pina Bausch havia estreado na última sexta-feira seu novo espetáculo com título provisório de "Uma Peça de Pina Bausch 2009". Aclamada com longos e entusiasmados aplausos por parte do público, a peça foi apresentada no recém-reformado teatro de Wuppertal. Mal sabia o público que ali se despediria de uma revolucionária do mundo da dança.

A coreógrafa alemã dissolveu os limites entre teatro e dança e é, sem dúvida, uma das mais importantes e influentes personalidades da artes cênicas no século XX. Ela completaria 69 anos no próximo dia 27 e viria ao Brasil para uma temporada de "Café Muller" e "A Sagração da Primavera", duas de suas obras-primas, em setembro, pela Temporada de Dança 2009 do Teatro Alfa, em São Paulo.
O triste acaso é que as vendas de ingressos para a turnê brasileira começaram exatamente ontem. Em comunicado oficial, o Teatro Alfa afirma que as apresentações estão mantidas, pelo menos até segunda ordem - ou seja, um posicionamento contrário da própria companhia.
Trajetória
Pina Bausch nasceu em Solingen, na Alemanha, em 27 de julho de 1940. Estudou na mais importante escola moderna de seu país, a Folkwang, em Essen, dirigida por Kurt Jooss, onde recebeu e transformou a herança dos mestres do expressionismo, como Laban, em uma linguagem peculiar.
Estudou também na conceituada escola de dança norte-americana Juilliard, mas logo alçou voo autoral. "Ela não é apenas uma grande coreógrafa, mas também uma encenadora", opina Iracity Cardoso, diretora da São Paulo Cia. de Dança. "Uma artista que tratou temas tão importantes de uma maneira ácida e realista num certo momento e, agora, nesse início do século XXI, começou a ficar um pouco mais romântica, poética e, com muito senso de humor, mostrou-se, cada vez mais, apaixonada pela vida", afirma Iracity.

Ex-crítica de dança, bailarina e atual diretora artística da São Paulo Cia. de Dança, Inês Bogéa ressalta a colaboração de Pina para a revolução na forma de dançar, criando, ao mesmo tempo, sua marca registrada. "Os espetáculos dela são criados com perguntas descritivas e abstratas, respondidas pelo corpo, entendendo a palavra como movimento e o gesto como palavra. É uma grande artista que entende profundamente a dramaturgia do espetáculo, trabalha com a repetição e a colagem, criando sentidos que estão para além do que se vê, e nos impacta coma sensação do inusitado e do conhecido." Para Inês, "ela está para a dança como Fellini para o cinema, Shakespeare para o teatro, Van Gogh para a pintura".

Rodrigo Pederneiras, coreógrafo do Grupo Corpo, afirma que Pina Bausch promoveu uma reviravolta absoluta no mundo da dança. "Sem exageros, existe o antes e o depois de Pina", opina Rodrigo, ressaltando que a ‘explosão’ de Pina (com "Café Muller", em 1978) é praticamente contemporânea da criação do Corpo, em 1975. "Pina conseguia com economia de gestos dizer o máximo. Faz valer a frase ‘menos é mais’", avalia o coreógrafo.

Nos últimos anos, Pina Bausch e sua companhia se dedicaram a visitar cidades pelo mundo e, a partir das impressões e sensações vivenciadas nesses espaços, criar seus espetáculos. A coreógrafa esteve no Brasil com essa missão, em 2000, quando criou "Água", espetáculo que estreou em 2001. "Ela virou uma cidadã do mundo, visitando as cidades e recriando em cena as emoções que sentia como testemunha da vida de cada um desses lugares", afirma Inês Bogéa. "Pina queria que o movimento nascesse da intensidade, da individualidade", afirma o jornalista e professor Fabio Cypriano, que lançou, em 2005, um livro sobre a coreógrafa ("Pina Bausch", CosacNaify, 176 páginas), após quase dez anos de convívio com a coreógrafa. Ele diz que uma frase sintetiza o pensamento de dança que guiava a criadora: "Eu não investigo como as pessoas se movem, mas o que as move".
Alguns espetáculos
"Fritz"(1974)
"Ifigênia em Tauris" (1974)
"Sacre" (1974)
"Orfeu e Eurídice" (1974)
"A Sagração da Primavera" (1975)
"Os Sete Pecados Capitais" (1976)
"Vem, Dança Comigo" (1977)
"Cafe Müller" (1978)
"Bandoneon" (1980)
"Masurca Fogo" (1998)
"Wiesenland"(2000)
"Água"(2001)
"Nefés"(2003)
"Rough Cut" (2005)

quinta-feira, 25 de junho de 2009

o estrangeiro

Caetano gera polêmicas desde sempre e não vai parar de gerar. Eu não vou conseguir ser imparcial nessa postagem, sou completamente guiada pela música e pela palavra de Caetano desde que nasci. E desde que nasci vejo ele sendo vivo. Polêmico, provocador, engraçado, poético, absurdo, estranho, vivo. Capaz de colocar lágrima e Big Brother num mesmo disco. Artista porque desde que surgiu no mundo, está no mundo.

domingo, 21 de junho de 2009

Lavoura Arcaica e os limites


Há muito de teatro no cinema. Há muito de cinema no teatro. As Artes que cada vez se mesclam mais e mais, e deixam de ser apenas uma coisa só: "Mas esse é um espetáculo é de Teatro? Não seria dança? Música?" Alguns espetáculos são tão cheios de nuances que não conseguem ser classificados em uma categoria única. É a projeção e o vídeo que invadem os palcos e se confundem com a movimentação do ator; é um canto numa tela de cinema que se confunde com um texto absolutamente literário; é uma poesia num concerto de música que faz com que esse mesmo concerto seja muito mais do que isso. São todos espetáculos: abarcam tudo o que se pode abarcar. São espetáculos: superam os limites que os denominam.
Lavoura Arcaica (2001), longa-metragem de Luiz Fernando Carvalho, é um espetáculo. O filme, com roteiro baseado no romance homônimo de Raduan Nassar, é preenchido por muita literatura durante todo o tempo. Filme longo, textos in off, textos falados, textos poéticos, textos coloquiais-poéticos que fazem com que o espetactador se sinta na situação mágica de se estar lendo um livro. Contudo, é mais que do que isso. As imagens, verdadeiros quadros-fotografias-paisagens que consomem a tela se mistura à música que conduz aquele que assiste para dentro da estória que se configura que, por sua vez, une-se à vida dos atores, atores esses que quase não parecem atores de tão vivos - uma interpretação latente e real própria de muitos espetáculos de teatro.
Lavoura Arcaica tem uma natureza difícil de se categorizar. É um conjunto de coisas juntas e misturadas. Algo que ultrapassa os limites e palavras. Exatamente como a vida.
Nos extras do filme, o diretor fala que toda a equipe da Lavoura Arcaica passou cerca de quatro meses vivendo numa fazenda, todos juntos, isolados das outras coisas, transformando o encontro do longa metragem muito mais do que uma sequência de ensaios. Era preciso viver a estória de Lavoura Arcaica para realizar o filme proposto. "Como conhecer as coisas senão sendo-as?" A frase, de Jorge de Lima, foi bastante mencionada por Luiz Fernando Carvalho durante toda a trajetória do filme.
Para alcançar a força de Lavoura Arcaica, os atores precisaram superar a idéia de interpretação. Superar os limites impostos pelas categorias. Pensar que não se estava fazendo apenas um filme. Misturar-se à música, às artes plásticas, ao teatro, à literatura, à vida. Para esse tipo de proposta, foi necessário ser.
Termino com uma frase de Tom Jobim: "Esse negócio de entender uma coisa, tem que amar."

sexta-feira, 12 de junho de 2009

música de todos os lados



Caetano e Bethânia




Bethânia e Caetano

domingo, 7 de junho de 2009

vai, vai, vai, vai

"A Alma Imoral"


A Alma Imoral, de Clarice Niskier, se apresenta hoje pela última vez em Belo Horizonte. O texto, adaptação do livro homônimo do rabino Nilton Bonder, aborda conceitos como fidelidade e traição. No monólogo, a atriz, vencedora do Prêmio Shell 2007 por este trabalho, cumpre grande parte da narrativa, que dura 50 minutos, nua.

Com público várias apresentações pelo Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e Belo Horizonte no ano passado, o espetáculo leva o espectador a percorrer, a partir de narrativas ancestrais, o caminho defendido pelo rabino da necessidade de transgredir para progredir. Clarice Niskier reflete cenicamente a ousadia do texto, que trata de questões universais. A atriz desafia, com humor cínico, delicadeza e calma, parábolas judaicas para definir dois impulsos: o da perpetuação e o da ruptura, e mostra que, por mais paradoxais que possam ser, estão interligados.

No palco, Clarice Niskier utiliza apenas dois recursos cênicos: uma cadeira e um pano preto que, envolto em seu corpo, transforma-se em vários figurinos. A atriz começa contando por que decidiu transpor o livro para a dramaturgia, após seu primeiro contato com Nilton Bonder, em um programa de televisão, quando o rabino a presenteou com o livro. A interação com a plateia é tão intensa e fluida que em alguns momentos o público pode pedir a repetição de trechos para melhor compreensão das histórias.

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Vale a pena assistir. Aqui, em São Paulo, no Rio, em Curitiba, aonde for. Vale a pena pela ousadia, pela particularidade, pela provocação, pelo frescor no olhar. Seria algo assim, como uma alma que canta.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

"Aquela coisa toda" - Caetano Veloso fala sobre Pina Bausch

"Ensaio todos os meus shows sentado de frente para os músicos. Os movimentos de corpo que vou adicionando, depois subtraindo, substituindo - mas que, ao longo das temporadas, vão se multiplicando - , começam a se formar quando o show já está diante do público. Isso é o que me permite uma atitude desabusada com respeito às quase-danças que acompanham minhas apresentações de canções no palco. Não sou dançarino. Já na estréia de Livro vivo, em São Paulo, eu deliberadamente fazia, num determinado momento, gestos repetitivos, maquinais-obsessivos, num estilo que muitos associam ao trabalho de Pina Bausch: era um aceno a essa artista que me apaixona.
Na canção "Jorge de Capadócia", quando na letra se diz "cordas e correntes arrebentem/ sem o meu corpo amarrar", eu repetia diversas vezes (e independentemente do ritmo em que estava cantando) o gesto de desatar amarras, passando um pulso pelo outro com rispidez e abrindo os braços até meio-caminho, onde o movimento se interrompia e recomeçava. Era uma referência, parente dos flashes de Carmem Miranda ou de Mick Jagger que brilhavam por alguns segundos no show de Transa, em Londres, 1971. Fora essa citação, não há nada da dança de Pina Bausch nas minhas dancinhas de Livro vivo. Embora hoje haja muito de Pina Bausch em mim.
Pina estava em Paris na platéia de Livro vivo, no mês passado. Lá também estava Betty Milan, que escreveu um texto muito terno sobre o show. Nesse texto, Betty conta ter percebido a presença constante da dança de Pina na minha dança. Mas a verdade é que a grande influência no desenvolvimento do meu gestual cênico vem de outra dançarina: Maria Esther Stockler, sobre quem escrevi palavras entusiásticas no livro Verdade tropical (e de cuja arte se podem ver exemplos no filme O cinema falado), mas cuja contribuição propriamente artística não encontrou, no referido livro, o espaço de comentário que mereceria. Curiosamente, foi Betty Milan quem me chamou a atenção para o fato de ser esse meu tão extenso livro uma conversa entre homens, em que as mulheres não parecem ter presença de criadoras ou pensadoras. De fato, por mais impactante que tenha me parecido o estilo pessoal (e literário) de José Agrippino de Paula, Maria Esther Stockler não poderia estar no livro apenas como sua namorada, quando, no fim das contas, há mais influência direta da arte dela sobre a minha do que poderia haver da dele. "Clube do Bolinha". (Tampouco aparece no livro referência ao trabalho de Eveline Hoisel sobre Panamérica, trabalho que li antes mesmo de ser publicado e que desmente minha afirmação de que a "epopéia" de Agrippino não teve acompanhamento crítico significativo.) Maria Esther, com sua independência, sua feroz radicalidade, resguarda do lixo vulgar do mundo publicitário em que atuamos os passos sagrados, os acenos a um tempo viscerais e etéreos, os meneios cultos e orgânicos que ela tem sabido desenvolver. É o que vejo nela que, quase sem pensar, busco nos esforços de purificação corporal libertadora com que, entre outras coisas, tento salvar-me de mim mesmo. Maria Esther Stockler, uma bailarina brasileira.
Pina Bausch é outra coisa para mim. Chegou muito depois e me conquistou pela surpresa. O importantíssimo acontecimento que foi a volta ao Brasil de Gerald Thomas como diretor de teatro trouxe às conversas que ouvi - e aos artigos que li - dois nomes: Bob Wilson e Pina Bausch. Ligavam sempre ambos a uma estética de alta formalização e a uma temática do desespero expresso em movimentos obsessivos. Nunca vi nada de Wilson. Vi as encenações de Thomas e, embora me impressionasse a adequação da produção aos efeitos almejados _e ele me parecesse, ao menos quanto a isso, deixar o resto do teatro brasileiro na pré-história_, nada chegou a me encher as medidas como o tinham feito o Zumbi de Boal e O rei da vela de Zé Celso _e como veio a fazê-lo o recente Ventriloquist do próprio Gerald.
As primeiras peças dele a que assisti me sugeriam vitrines bem-arrumadas em que se expunha, não sem uma certa ironia, a estetização de um pessimismo de convenção. Quando vi o grupo de Pina pela primeira vez, no Municipal do Rio, com um espetáculo em que se dizia que os bailarinos dançavam sobre lama e uma mulher chorava por 15 minutos, com grito e montanha no título, fiquei estarrecido. Em vez da butique do desespero que seus supostos admiradores brasileiros anunciavam, encontrei uma força viva, uma inspiração genuína que funcionava em mim como se eu estivesse recebendo pela primeira vez (e ao mesmo tempo) os contos de Clarice Lispector e o Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band.
As roupas ocidentais modernas nunca foram comentadas pela dança com tanta profundidade. A lama era um desafio cenográfico que, por se lograr do modo como se lograva, perdia o caráter de notícia e, ainda assim, não se gastava como efeito, sempre oferecendo grandes oportunidades de experiências tenras, novas - isso ao longo de horas. A mulher que chorava no intervalo trazia um tal sinal de frescor do ânimo do grupo, era um tal testemunho da realidade do teatro e da teatralidade do real, que a gente não tinha como reagir com uma resposta pronta: a gente tinha que se demorar, conviver, pensar, parar de pensar, parar para pensar. Um uivo de lobo com lua de papel colada no fundo do palco; uma mulher que andava sobre um imaginário chão vertical na linha da cortina lateral do palco, repetidamente carregada por um grupo de homens desde o chão até o mais alto que desse; um torneio de natação (a lama sobre o palco). Em suma, eu me comovia e me esquecia de mim e reencontrava lugares do espírito que aos poucos reconhecia e era levado a outros lugares que desconhecia até então e que me faziam entender melhor os antigos lugares. Tinham me anunciado um show de idéias cromadas e eu encontrava a vida. Me falavam de Gerald e de Antunes e de Bia Lessa e de Bob Wilson e eu só me lembrava de Aquela coisa toda do Asdrúbal Trouxe o Trombone.
Isso aqui é uma confissão algo acrítica de um espectador que se sente artista enquanto assiste. Aquela coisa toda foi uma das minhas mais intensas experiências como espectador de teatro. Não poderia talvez criticamente comparar-se ao Zumbi, ao Rei da vela, ao Macunaíma. Contemporâneo deste último, o espetáculo do Asdrúbal era-me, então, grandemente preferível. É que a instância crítica é uma instância precária.
Os atores do Asdrúbal tinham necessariamente que ser aquelas pessoas. O palco de repente ficava nu, enquanto eles surgiam em pontos dispersos da platéia para lançar perguntas aos integrantes do grupo. Essas perguntas eram cômicas, tocantes, embaraçosas: e o palco vazio e silente deixava-nos com um espaço aberto na mente, um pouco assustados, um pouco melancólicos, como na experiência de certos poemas. Quando a situação de repente se invertia e os atores se amontoavam no palco e respondiam perguntas que não se ouviam, o silêncio da platéia saía de cada espectador como se fosse uma exposição de suas responsabilidades. De repente, Dionisos em pessoa fazia uma aparição. Quando, ao final, depois de os atores quase-dançarem um périplo pelos Estados do Brasil, eles aderiam, com palavras justas e passo marcado, às greves então arriscadas e pioneiras dos operários paulistas, a dimensão política se nos revelava como uma questão moral íntima, como um movimento do afeto.
Isso tudo era considerado pela crítica profissional como "narcisismo", um "olhar para o próprio umbigo". E, como o público convencional de teatro acompanhava a crítica no entusiasmo pelo Macunaíma de Antunes, e o público especial que o Asdrúbal tinha criado para si com Trate-me leão não reencontrava o costumismo dessa peça em Aquela coisa toda, assisti a esta última muitas vezes quase sozinho no teatro. O que me deixou na memória um segredo estético que não compartilho bem nem com os responsáveis pelo espetáculo. De fato, foi essa qualidade de alma que reencontrei na primeira visão do teatro de Pina - mas Hamilton Vaz Pereira, o diretor de Aquela coisa toda, na platéia do Municipal naquela noite, me confessou não ter percebido o encanto do Tanztheater de Wuppertal.
Eu, porém, entre Rio e Nova York - e depois em Wuppertal, na celebração dos 25 anos da companhia -, vi tudo o que pude de Pina: quase todo o repertório. E sempre a renovação e o aprofundamento da esplendorosa impressão inicial. E sempre a surpresa.
Propus-me a saudar Pina Bausch quando aceitei escrever aqui sobre sua arte. E, no fim, me entreguei a digressões que são retalhos de autobiografia (e reparos à quase-autobiografia que já publiquei em livro). E o que sinto que falta dizer não é de outra natureza.
Devo aqui saldar uma dívida enviesada com o teatro-dança de Tom Zé. O momento em que ele tirava partido do fato de estar sentado numa cadeira diante de um microfone, com minuciosa inventividade, foi um dos mais entusiasmantes para mim do show que ele apresentou, faz poucos anos, no teatro Vila Velha, na Bahia. Paula Lavigne, que estava comigo, me disse depois do espetáculo: "Você é legal, tudo o que você faz pode ser interessante, mas isso aí é diferente: isso aí é um gênio". Foi no Circuladô que eu fiz, pela primeira vez, um número de cantar meio-dançando sentado na cadeira: era o tango "Mano a Mano" e eu contracenava com o violão. Depois, no show Fina estampa, criei variações para isso em "Lamento Borincano".
O que vi de Tom Zé no Vila Velha era tão diferente do que faço que eu nunca pensei em relacionar as duas coisas. Muito menos em considerar precedências. Mas é certo que Tom Zé estava ali repetindo - ele o disse - um número que ele tinha feito na TV anos antes. Ao me ver recentemente no show Livro vivo, fazendo um número assim, Tom Zé sentiu-se mal. E me disse isso. Como muita gente viu Livro vivo, e muito pouca gente viu Tom Zé fazendo aquele número, preciso dizer de público que, em matéria de cantor cantar dançando-representando sentado na cadeira, o número de Tom Zé não é apenas diferente do meu, mas muito melhor. E talvez anterior. Além de não ser seguro que eu não tenha, inconscientemente, pegado algum detalhe exterior daquilo que ele fazia. Muita dor atravessa esses anos todos em que fui famoso e Tom Zé não.
Antes disso, ele e eu aprendemos muito com Boal. O Arena canta Bahia era sobretudo teatro-dança. Chico Buarque acha que, no meu livro, fui injusto com Boal. Não fui. É injusto deixar parecer que, no livro, não traço, ao falar dele, o retrato de alguém grandioso artisticamente. Pediria a quem pensou como Chico que reconsiderasse o teor dos elogios ali contidos à personalidade artística de Boal. Que houve, no momento do tropicalismo, um antagonismo explícito entre nós e ele, não quis (nem deveria) negar. Narrei-o. Qualquer leitor pode decidir que Boal, e não os tropicalistas, é que tinha razão.
Deveria falar também da angústia de ter demorado tantos anos para ver Denise Stoklos no palco. Se este fosse um artigo crítico, eu não poderia deixar de medir a importância que ela tem para mim. E os que fazem dança propriamente, no Brasil: o grupo Corpo, Débora Colker, tantos. Mas a dança, em estado puro, tinha que ficar aqui representada por Maria Esther Stockler.
E Pina Bausch? Lá vai Caetano, dirão, olhando para o próprio umbigo, escrevendo sobre si e sobre o que vai escrevendo sobre si. Mas não é. É que entrar em contato com uma artista grande como Pina é arriscar-se a passar por mudanças que requerem auto-reexame. Em outras palavras: a quem me dá a vida não posso oferecer nada menos do que isto: a minha vida."